Uma miragem pode referir-se a um fenômeno óptico causado pela refração da luz em determinadas superfícies – em geral, a propagação da luz dá o efeito de liquefazer a superfície –, ou pode ter o sentido de ilusão, algo que aparenta ser algo que não é. Paul Clemence se aproveita dessa dualidade em seu ensaio fotográfico Miragem Moderna, no qual retrata a Casa do Baile (atual Centro de Referência de Arquitetura, Urbanismo e Design), o Museu de Arte e a Igreja da Pampulha através de seus reflexos no espelho d’água do conjunto moderno projetado por Oscar Niemeyer em Belo Horizonte (MG).
O edifício aparece refletido e liquefeito nas fotografias ao invés de diretamente representado. Esse desvio de perspectiva não só “derrete” a arquitetura através de um fenômeno físico, como também borra os contornos do ideal moderno que a arquitetura de cânones como Niemeyer representava e almejava à época e atualmente. Esse recorte visual e indireto brinca com a dupla percepção “do que é real ou simplesmente uma ilusão (atmosférica ou conceitual) de ótica”, segundo o próprio artista.
Além das fotografias, Clemence imprimiu sua miragem em tecido voil para a exposição Lugar imaginado, lugar vivido: 80 anos da Casa do Baile, com curadoria de Guilherme Wisnik e Marina Frúgoli. A proposta curatorial apresenta e expande a história do edifício, insere o mesmo num contexto mais amplo – para além da assinatura de seu autor –, com seu entorno e contexto citadino. Nesse sentido, a impressão fotográfica traz para dentro da Casa do Baile o espelho d’água do lado de fora.
A obra usa uma fotografia que retrata o reflexo das colunas da Casa na lagoa para, através da imagem em si e da transparência do meio utilizado, estabelecer uma nova relação entre a arquitetura e a lagoa, entre o construído em concreto e seu contexto líquido, entre a visão original e a experiência contemporânea, enfim, entre o espaço e o sonho. — Paul Clemence
O trabalho resulta em uma imagem semi-abstrata, e faz referência também às paisagens impressionistas. A miragem no espelho d’água lembra as pinceladas de Claude Monet, e pode ser vista como um comentário (ou questionamento) sobre a mudança de paradigma com o surgimento da fotografia em relação à pintura, a representação da paisagem através de seus meios específicos – pincel e tinta para um, obturador e luz para outro –, e a imagem em si, resultado do olhar e gesto do artista de ambos casos.
Essas dualidades são sugeridas pela Miragem Moderna de Clemence. A arquitetura moderna tão precisa e pensada – apesar de sinuosa – treme no espelho d’água, seus contornos se dissolvem ao sabor do vento. Ou seja, além de todo o questionamento conceitual e teórico, sobre história da arte, sobre arquitetura moderna, sobre os ideais arquitetônicos e seu confronto com a realidade, a miragem da Casa do Baile agrega mais um: apesar do status de Arquitetura, a construção ainda está (e talvez sempre esteja) sob o jugo da natureza.
As intempéries são as “inimigas” da construção. Na fotografia, a Casa do Baile sucumbe ao movimento da água. Mais uma vez, a miragem se desdobra para o observador. A complexidade do mundo natural engana o olho, produz fenômenos de força inigualável. Enquanto isso, o mundo construído promete desenvolvimento e progresso, pretende-se dominador dos meios, mas segue à mercê de contingências mais numerosas e complexas que ele próprio, causadas por ele próprio, inclusive. Nas palavras do artista: “entre a visão original e a experiência contemporânea, enfim, entre o espaço e o sonho”.